Dano moral indireto: quem pode pedir reparação por morte ou por ofensa a um ente querido?
Quando a morte resulta de uma conduta ilícita, a legislação brasileira impõe a obrigação de reparar o sofrimento causado aos familiares. É o chamado dano moral indireto, reflexo ou por ricochete. A mesma previsão vale para os casos em que alguém é ofendido e essa situação provoca grande abalo em pessoas muito próximas.
De acordo com os artigos 186 e 187 da Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002 – que institui o Código Civil –, comete ato ilícito aquele que por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, viola direito e causa dano a outrem, ainda que exclusivamente moral. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.
Danos e legitimados
Segundo o ordenamento jurídico brasileiro, os danos podem ser morais, materiais ou estéticos. Com frequência, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) julga recursos envolvendo pedidos de danos morais em casos de morte ou ofensa a ente querido, e um tema relevante nesses processos é a legitimidade para propor a ação.
A jurisprudência do STJ tem considerado como parte legítima da demanda reparatória qualquer parente em linha reta ou colateral até o quarto grau, conforme destacado no voto proferido pelo desembargador convocado Lázaro Guimarães no AREsp 1.290.597.
Um exemplo antigo desse entendimento foi o julgamento do REsp 239.009, de relatoria do ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, em que foi reconhecida a legitimidade dos sobrinhos para requerer indenização por danos morais pela morte do tio que vivia sob o mesmo teto.
“A vítima era o filho mais velho e residia em companhia dos pais, irmãos e sobrinhos. Tais fatos, a meu ver, seriam suficientes por si só para caracterizar a dor sofrida pelos autores”, disse o relator.
Múltiplos arranjos
Entretanto, o ministro Luis Felipe Salomão, ao relatar o REsp 1.076.160, ressaltou a necessidade de o juiz considerar o caso concreto na análise do direito à indenização, dada a existência de diversificados arranjos familiares.
“Cumpre realçar que o direito à indenização, diante de peculiaridades do caso concreto, pode estar aberto aos mais diversificados arranjos familiares, devendo o juiz avaliar se as particularidades de cada família nuclear justificam o alargamento a outros sujeitos que nela se inserem; assim também, em cada hipótese a ser julgada, o prudente arbítrio do julgador avaliará o total da indenização para o núcleo familiar, sem excluir os diversos legitimados indicados”, afirmou Salomão.
No julgamento do REsp 865.363,o ministro Aldir Passarinho Junior, apesar de aplicar a Súmula 7, reconheceu a possibilidade de pagamento de indenização à sogra de uma vítima de acidente de trânsito. “O de cujus residia com sua sogra, na residência da mesma, e era ela quem cuidava dos netos, daí a particularidade da situação a, excepcionalmente, levar ao reconhecimento do dano moral em favor da primeira autora”, ponderou o magistrado.
Limitações
Também no REsp 1.076.160, o ministro Luis Felipe Salomão afirmou que nesse tipo de reparação deve haver limitações tanto em relação ao número de ações relacionadas a um mesmo evento quanto em relação ao valor cobrado do responsável pelo dano.
“Conceder legitimidade ampla e irrestrita a todos aqueles que, de alguma forma, suportaram a dor da perda de alguém – como um sem-número de pessoas que se encontram fora do núcleo familiar da vítima – significa impor ao obrigado um dever também ilimitado de reparar um dano cuja extensão será sempre desproporcional ao ato causador. Ao reverso, quando se limitam os legitimados a pleitear a indenização por dano moral (limitação subjetiva), há também uma limitação na indenização global a ser paga pelo ofensor”, afirmou.
No caso analisado, o relator não reconheceu ao noivo o direito de ser indenizado pela morte de sua noiva, que faleceu alguns dias após ser arremessada para fora de transporte coletivo e sofrer traumatismo craniano.
“O dano por ricochete a pessoas não pertencentes ao núcleo familiar da vítima direta da morte, de regra, deve ser considerado como não inserido nos desdobramentos lógicos e causais do ato, seja na responsabilidade por culpa, seja na objetiva, porque extrapola os efeitos razoavelmente imputáveis à conduta do agente”, fundamentou Salomão.
Comprovação de afetividade
No julgamento do REsp 1.291.845, também de relatoria do ministro Luis Felipe Salomão, a Quarta Turma manteve condenação da VRG Linhas Aéreas (sucessora da Gol Transportes Aéreos) ao pagamento de indenização a irmã de vítima do acidente aéreo envolvendo o avião Boeing 737-800 que vitimou 154 pessoas, em 2006.
Em sua defesa, a companhia aérea alegou que a irmã e a vítima eram irmãos apenas “por parte de pai” e que residiam em cidades diferentes. Logo, não se poderia presumir a existência de vínculo de amizade ou afeição, muito menos de amor entre os dois.
A turma não acolheu a alegação e entendeu que não é necessário que se comprove a afetividade para pleitear indenização por danos morais reflexos. Além disso, o colegiado considerou o fato de a irmã ser a única herdeira do falecido, já que ele não tinha descendentes, o pai era pré-morto e a mãe também foi vítima do acidente aéreo.
“O fato de a autora ser irmã unilateral e residir em cidade diferente daquela do falecido, por si só, não se mostra apto para modificar a condenação, uma vez que eventual investigação acerca do real afeto existente entre os irmãos não ultrapassa a esfera das meras elucubrações”, concluiu o relator.
Filho com família própria
Ao julgar o REsp 1.095.762, a Quarta Turma entendeu que os ascendentes têm legitimidade para requerer indenização por danos morais indiretos pela morte de filho, ainda que este já fosse maior e tivesse família própria constituída, “o que deve ser balizado apenas pelo valor global da indenização devida, ou seja, pela limitação quantitativa da indenização”.
A relatoria foi do ministro Luis Felipe Salomão, que destacou que, apesar da tese definida pelo colegiado no já citado REsp 1.076.160 – segundo a qual, em regra, a legitimação para a propositura de ação de indenização por dano moral em razão de morte deve alinhar-se, com as devidas adaptações, à ordem de vocação hereditária –, nesse caso deve-se considerar “o poderoso laço afetivo que une mãe e filho”.
Ainda no REsp 1.076.160, a ministra Isabel Gallotti, em voto-vista, discordou desse entendimento. “Registro, ainda, que, ao contrário da disciplina legal para o caso de sucessão, não considero aplicável a ordem de vocação hereditária para o efeito de excluir o direito de indenização dos ascendentes quando também postulado por cônjuge e filhos. É sabido que não há dor maior do que a perda de um filho, porque foge à ordem natural das coisas”, afirmou a magistrada.
Também sobre a unidade familiar que permeia o núcleo formado por pai, mãe e filhos, o ministro Raul Araújo, na relatoria do REsp 1.119.632, ressaltou que a agressão moral praticada diretamente contra um deles refletirá intimamente nos demais, “atingindo-os em sua própria esfera íntima ao provocar-lhes dor e angústia decorrentes da exposição negativa, humilhante e vexatória imposta, direta ou indiretamente, a todos”.
Dependência econômica
Outro ponto importante sobre o tema é a prescindibilidade de dependência econômica para pleitear indenização por danos morais por ricochete, ou seja, o requerente não precisa provar que o falecido o mantinha financeiramente.
No julgamento do REsp 160.125, o ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira destacou que a indenização por dano moral não possui natureza patrimonial, já que “não visa ao reembolso de eventual despesa ou a indenização por lucros cessantes”.
Para o magistrado, tal reparação tem relação com a personalidade, sendo que, no caso de morte, é oriunda “da dor, do trauma e do sofrimento profundo dos que ficaram”.
No mesmo sentido julgaram o ministro Humberto Gomes de Barros no REsp 331.333e o ministro Sidnei Beneti no REsp 876.448.
Fonte: AASP